sábado, 20 de abril de 2013

O Jovem Rei - Oscar Wilde

Em recente artigo na Revista Piauí, o escritor Mário Vargas Llosa comenta um relatório da ONU sobre a situação da água e do saneamento básico no mundo, principalmente no mundo pobre, também chamado de "Terceiro Mundo". Os dados são estarrecedores e me fizeram refletir, mais uma vez, sobre o papel de cada indivíduo nesta situação, principalmente dos indivíduos que, como eu, têm acesso tão fácil à água potável e à rede de saneamento básico que esquecem que, para milhões de pessoas no mundo, ter acesso a água potável é um privilégio. Diz Llosa, baseado no relatório, que o que um de nós gasta de água para tomar banho é, para milhares de pessoas em alguns lugares do mundo, o volume total de água potável que elas terão acesso durante 1 ano...
De alguma forma, este conto O Jovem Rei, de Oscar Wilde, nos convida a esta reflexão, cujos desdobramentos não são nada simples: como viver com a consciência minimamente tranquila num mundo de tantas desigualdades? "Deverá a Alegria usar aquilo que a Dor formou?", nos pergunta o escritor, que também nos sugere uma resposta:

E depois que o bispo os ouviu [os sonhos], franziu o cenho e disse:

 - Meu filho, sou um velho, no inverno de meus dias e sei que se fazem muitas coisas más no vasto mundo. Os bandidos ferozes baixam das montanhas e levam os meninos para vendê-los aos mouros. Os leões ficam de tocaia às caravanas e saltam sobre os camelos. O javali arranca os trigais no vale e as raposas roem as vinhas da colina. Os piratas devastam a costa e queimam os barcos dos pescadores e tomam-lhes as redes. Nas salinas vivem os leprosos; têm choças de caniço trançado e ninguém pode aproximar-se deles. Os mendigos vagam pelas cidades e compartilham sua comida com os cães. Podeis impedir tais coisas? Acolhereis o leproso como companheiro de cama e sentareis o mendigo à vossa mesa? Fará o leão o que o mandardes e obedecerá o javali às vossas ordens? Não é mais sábio do que vós Aquele que criou a miséria? Por isso, não posso louvar o que fizestes, mas ordeno-vos que volteis ao palácio, que torneis vosso rosto alegre, que vistais o traje que convém a um rei, e com a coroa de ouro vos coroarei e colocarei em vossa mão o cetro de pérola. Quanto a vossos sonhos, não penseis mais neles. O peso deste mundo é demasiado grande para que possa suportá-lo um homem e a dor do mundo é também demasiado pesada para que possa suportá-la um coração.*




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*Extraído de: Oscar Wilde, Obra Completa, volume único. Editora Nova Aguilar. 1980.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Judas Iscariotes - Leonid Andreiev

Inspirado (ou sensibilizado) pela época pascalina, resolvi reler um dos meus contos prediletos: Judas Iscariotes, do russo Leonid Andreiev (1871-1919).

Andreiev morreu bastante jovem, como muitos outros gênios. Mas viveu o suficiente para presenciar fatos marcantes de seus país e da Europa. Detentor de uma sensibilidade extrema, teve dificuldades de se ajustar à vida e aos acontecimentos políticos de seu país, inclusive sofrendo perseguições. Entre altos e baixos, estes desajustes provocaram até uma tentativa de suicídio. Escreveu sobre diversas temáticas, como a guerra, a política, temáticas bíblicas e universos psicológicos. Dele são também alguns outros contos excepcionais, como Os sete enforcados (através do qual eu o conheci) e Lázaro, também em torno do tema bíblico.

Este conto baseado em Judas Iscariotes é algo realmente sublime. Traz uma visão sobre a personalidade do apóstolo, seu relacionamento com os outros apóstolos e, principalmente, com o Mestre. O diálogo derradeiro entre Judas e Jesus, que antecede a traição, é uma das passagens literárias mais sublimes que eu já li. Não preciso dizer que a reli muitas, muitas vezes. Ei-lo:

Faltavam, apenas, algumas horas, que corriam céleres e implacáveis.
A calma descia sobre a terra; longas sombras estendiam-se pelo chão, anunciando a noite iminente, na qual devia desenrolar-se a grande tragédia.
De repente, ouviu-se uma voz triste e rude:
- Sabes aonde vou, Senhor? Vou entregar-Te nas mãos de Teus inimigos.
Um silêncio profundo envolveu a paz do anoitecer e o mistério das sombras fixas como lágrimas negras.
- Não respondes, Senhor? Ordenas que vá?
Como resposta, fez-se um silêncio ainda mais profundo.
- Permite que eu fique! Acaso não podes? Ou não Te atreves? Ou é que não queres?
E o silêncio continuou, um silêncio vasto e profundo como o olhar da eternidade.
- E, sem dúvida, sabes que Te amo. Tu sabes tudo. Por que olhas Judas desse modo? Grande é o mistério de teus olhos; mas, o meu é menos profundo? Dize-me para que fique. Por que silencias sempre, Senhor? Procurei-Te na angústia e na dor. Procurei-Te e achei-Te. Salva-me! Livra-me de mim mesmo! Tira-me este encargo, mais pesado do que uma montanha. Não ouves como ruge o peito de Judas Iscariotes sob esse peso?
E um derradeiro silêncio foi feito, imenso, como o último olhar da eternidade.
- Vou entregar-Te.
A paz do anoitecer não se turvou com essa mancha, o vento não gemeu entre a folhagem, as fontes não soluçaram, nem a terra fria gemeu, tão débil era o rumor daqueles passos que se distanciavam. Desvaneceram-se e tudo silenciou. E o crepúsculo pareceu sumir-se em profundo sonho, tragado pelas sombras. Nisto, a terra suspirou com o rumor desolado das folhas agitadas; suspirou mais uma vez e imobilizou-se à espera da noite.*

A segunda parte do texto, que trata dos acontecimentos após a prisão do Mestre, além de magnífica, lança outros olhares sobre a narrativa bíblica e nos convida a reflexões em muitos sentidos, alguns deles fora dos paradigmas. Um excelente conto. Imperdível.


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*Extraído de: Leonid Andreiev. Judas Iscariotes. Clube do Livro. São Paulo. 1984.